terça-feira, 25 de dezembro de 2007

Movimentando o currículo de uma escola do campo através de uma ação colaborativa no enfrentamento dos problemas do dia a dia (2004-2005)

Do segundo semestre de 2004 até o final do ano de 2005, a Professora Eliane Harter Pires foi uma das maiores colaboradoras no projeto, participando ativamente das atividades e da discussão dos referenciais de pesquisa, inclusive ingressando no GAPE (Grupo de Ação e Pesquisa e Educação Popular, da FaE/UFPel). Ela foi a primeira professora da escola a colocar o currículo em discussão e chamar os pais para participar dessa discussão. Começou a trabalhar em outubro de 2003 com a 1ª série, em 2004 acompanhou seu grupo de educandos na 2ª série e em 2005 recebeu na 2ª série o meu grupo de educandos. Outra grande colaboradora, que passou a participar do trabalho de investigação, é a Professora Ana Maria Feijó Bório Xavier, presidente do Sindicato dos Municipários do Capão do Leão, que vem participando ativamente do processo de discussão dos problemas da comunidade escolar com pais/mães e no processo de formação de pais/mães da escola.
Na Escola M. E. F. Álvaro Berchon as professoras vinham enfrentando, principalmente nas séries iniciais do Ensino Fundamental, um limite colocado pela comunidade escolar que era a idéia de que o conhecimento trabalhado nas escolas do campo deveria ser um “conhecimento inferior” ao das “escolas da cidade”, como dizia Joseana: “Na campanha as coisas tem que ser mais fáceis professora, a gente não precisa aprender muita coisa, porque a gente vai ficar aqui mesmo. Os da cidade é que precisam aprender mais” (4ª série, 10 anos, no ano de 2004).
Partir do saber dos educandos para a produção de um saber mais elaborado do mundo deles é um desafio apaixonante, principalmente se esses educandos são crianças que estão descobrindo o mundo. Trabalhar com a realidade, considerar a totalidade que a constitui é uma tarefa assustadora quando se está sozinho, mas quando trabalhamos com outros educadores e consideramos que os educandos são agentes do processo e também educam, essa tarefa torna a atividade pedagógica algo envolvente e abre o leque de possibilidades de trabalho com o grupo. Quando isso ocorre, 200 dias letivos tornam-se pouco para um ano letivo. Um projeto de trabalho, que pode inicialmente ter sido planejado para ser desenvolvido em poucos dias, começa a apontar novas possibilidades e novos projetos que necessitam envolver um número cada vez maior de pessoas e espalhar-se por territórios que estão muito além dos muros escolares.
A “sanga” que corre próxima a escola começa a ser percebida e a se tornar objeto de estudo; uma simples brincadeira com balões pode tornar-se um estudo sobre as leis da física; um filme, um desenho, ou uma novela tornam-se pretexto para produzir textos, problematizar relações sociais, enfrentar “monstros” e medos terríveis, estudar história universal e divisões geográfico-políticas; fazer o “rancho” semanal para os pais na hora do recreio, uma oportunidade para o grupo aprender a fazer cálculos, economia, leitura, ciências, educação ambiental, hábitos alimentares mais saudáveis,...
Quando as crianças encontram terreno fértil para sua curiosidade e pessoas dispostas a acompanhá-las nesse processo investigativo, elas começam a questionar mais e mais o mundo em que vivem, até que as relações dos grupos dos quais fazem parte se tornam objeto dessa curiosidade.
Nessa relação, não são envolvidos apenas educadoras e educandos, os pais/mães também têm um papel muito especial, pois a preocupação de acompanhar o aprendizado dos filhos os colocam em contato constante com a escola, questionando e cobrando os modelos de educação aos quais estavam acostumados. Numa relação (ação) colaborativa, as reuniões pedagógicas com a comunidade acabam assumindo um caráter educativo muito forte, pois pais e educadores discutem o processo de ensino desde as práticas cotidianas até os conteúdos oficiais e materiais oficiais do governo para as escolas. É um momento em que todos tem muito a dizer e a aprender e que por isso, também constitui a riqueza do processo educativo.
Esse processo não é manso, pois os conflitos existentes na comunidade são inúmeros e manifestam-se nessas reuniões e no cotidiano da sala de aula. Cada vez mais faz-se necessário procurar compreender esses conflitos da comunidade, mas sem os alimentar e sim, assumindo uma postura de indignação frente às demonstrações de preconceito. Essa postura de indignação ajuda-os a saber que existem outras formas de ver e tratar uma mesma questão e ajuda a problematizar o que vem acontecendo. Na relação com eles procuro me aproximar, mas não deixo de ser eu mesma[2], minha amorosidade não é ingênua, ela possui responsabilidades em relação ao grupo do qual já faço parte.
Na busca de construir um processo educativo que não seja invasão cultural, viemos – Eliane, eu e posteriormente Ana – tentando elaborar um conhecimento sobre as relações que constituem o grupo com o qual estamos atuando. Procuramos tentar entender o movimento do grupo, porque chegamos de fora. Acreditamos que é preciso conhecer para saber como os educandos e a comunidade vêm se tornado as pessoas que estão sendo e qual o nosso papel nesse espaço, como nos movimentarmos nele sem agredir as pessoas. Esse conhecimento,
... tem por base orientar-se para a realidade mesma que gera os problemas e na qual os homens estão. e, além disso, vai até ela com os homens que a vivem e, não, sem eles, para, assim juntos, extraírem da realidade que os mediatiza o conteúdo programático da educação” (Freire, 1979: 128).
No caso das primeiras séries, de 2004 a 2005, ocorreu um trabalho de investigação da realidade que era realizado diariamente e tinha como estratégias: (1) observações realizadas na sala de aula, na escola, na comunidade e no transporte escolar;
(2) conversas que eram estabelecidas com as crianças, com o pessoal da escola, com as mães e os pais, com professoras que já atuaram na escola e com pessoas que são da comunidade ou já foram;
(3) visitas à comunidade;
(4) passeios com registros, realizados com as crianças;
(5) reuniões pedagógicas com as mães/pais. O resultado desse trabalho vem sendo sistematizado em cadernos de campo e relatórios (Miranda, 2004, 2005 e 2006) e (Souza eti all, 2004).
Nesse processo de investigação, foi sendo buscada também uma aproximação das palavras geradoras do grupo de alfabetizandos (em 2004 e 2005), sendo que em 2004 elas foram resultado da análise dos dados que foram sendo organizados durante o ano e em 2005 as crianças passaram a fazer parte do processo de seleção, organizado essas palavras e elegendo as que iriam estudar.
A atividade de seleção e sugestão das palavras foi assumida pelo grupo de alfabetizandos de 2005 com a maior seriedade, assim como a proposição de temas de estudo, muitas vezes colocaram em “xeque” minhas conclusões sobre o que seriam temas e temáticas significativas para eles. A medida que tomaram parte na definição do planejamento, passei a estudar muito mais para “dar conta” das coisas que me perguntavam e do que propunham como conteúdo escolar para uma classe infantil. (Miranda, 2006: 10).
Esse trabalho estava amparado na idéia de que alfabetização não é puro treinamento técnico, pois acredito, como Freire (1997: 37), que
“(...) transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador”.
Por isso a busca de palavras que gerassem reflexão, criatividade, lúdico e ação era muito importante. Nesse processo também foi necessário, e continua sendo, lidar com as expectativas das crianças e da comunidade, pois um descuido nesse aspecto pode me levar a desrespeitar o grupo com o qual trabalho. Essa postura não quer dizer que eu, enquanto educadora e pessoa, irei assumir ingenuamente as concepções do grupo, mas sim, que necessito assumir que para problematizar é preciso conhecer.
Para o educador-educando, dialógico, problematizador, o conteúdo programático da educação não é uma doação ou uma imposição – um conjunto de informes a ser depositado nos educandos –, mas a devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entrega de forma desestruturada” (Freire, 2002: 83-84)
Por isso, no desenvolvimento do trabalho de investigação educacional colaborativo, na Educação Básica, em uma escola de Ensino Fundamental, da Zona Rural do município de Capão do Leão, é necessário adotar uma postura investigativa frente aos desafios do cotidiano do grupo com o qual se esta agindo e estar aberta aos sonhos e esperanças desse grupo. Buscar, a todo momento, perceber o seu agir e o pensar que sustenta esse agir. Nessa busca até mesmo o porquê estamos juntos é objeto de reflexão.
Ao contrário da imagem de senso comum de que as crianças da zona rural (do campo) são tão calmas que não falam, nem se mexem na sala de aula[3], a ação pedagógica, na Escola Municipal de Ensino Fundamental Álvaro Berchon, mostrou que os educandos de uma escola do campo são inquietos, falantes, curiosos, ávidos por aprender, têm personalidade e sabem exatamente o que querem, escolhem as atividades que os agradam mais, sugerem o que fazer nas aulas, gostam de movimento, de música, de propor e coordenar brincadeiras. Que dependendo da criação familiar do grupo de cada ano, conseguem trabalhar melhor no coletivo ou não. Os que não estão acostumados, no entanto, têm grandes possibilidades de se desenvolverem nesse aspecto.
Os educandos avaliam-me constantemente em função de suas expectativas iniciais e das expectativas que vem construindo. Aquela imagem ingênua que me pintavam das crianças, foi desconstruída após as primeiras semanas de aula. Sinto que eles (educandos e comunidade) também reconstruíram a imagem de professora, pois não me temem mais e me contestam quando acham que estou errada. Percebi que a questão da autoridade está fundamentada no respeito mútuo e precisa ser alimentada todos os dias para que não vire licenciosidade, pois essa relação é muito nova para as crianças e adultos que vivem em um contexto político-cultural muito autoritário.
“(...) o educando que exercita sua liberdade ficará tão mais livre quanto mais eticamente vá assumindo a responsabilidade de suas ações. Decidir é romper e, para isso, preciso correr o risco. não se rompe como quem toma um suco de pitanga numa praia tropical. Mas, por outro lado a autoridade coerentemente democrática jamais se omite. Se recusa, de um lado, silenciar a liberdade dos educandos, rejeita, de outro, a sua supressão do processo de construção da boa disciplina” (Freire, 1997: 104).
Quando realizamos atividades fora da escola, ou participamos de eventos do município com eles o que chama a atenção é justamente a desinibição das crianças que conversam e levantam questões com naturalidade e sempre tem o que dizer sobre o que está sendo trabalhado. Esse fato me mostrou que de alguma forma o trabalho que estamos desenvolvendo com o grupo, até o momento, vem produzindo algo positivo, o que não quer dizer que não temos encontrado inúmeros obstáculos, pois o conflito com mães que tentam individualizar as relações, os conflitos existentes em torno do uso do transporte escolar, os constantes problemas de saúde das crianças e os conflitos existentes com o poder público e privado da região, interfere diretamente nas relações sociais que se dão dentro da escola.
Essas dificuldades que vão surgindo no dia a dia e as próprias dificuldades que surgem no desenvolvimento do processo ensino aprendizagem, como o desenvolvimento mais lento de alguns alunos, que têm tempos diferentes de aprender, não estão superadas, não deixaram de existir, outras somam-se a elas no decorrer do trabalho. No entanto, essas dificuldades também constituem a realidade do grupo e precisam ser levadas em conta no processo de investigação.
NOTAS
[1] “(...) sem omitir-lhes minha opção partidária e religiosa, o que me cabe é testemunhar-lhes minha profunda amorosidade pela liberdade, meu respeito aos limites sem os quais minha liberdade fenece, meu acatamento à sua liberdade em aprendizagem para que eles e elas, amanhã, a usem plenamente no domínio político tanto quanto no da fé.(...)” (Freire, 2000: 37)
[2] Essa concepção está presente nas falas de muitos professores com quem converso em meu município e em outros da região.

2 comentários:

Eliane Pires disse...

Muito obrigada por me entender como colaboradora. Penso que preciso pensar mais sobre esta palavra.
Na realidade creio que fui parar nesta escola por um dos atalhos da vida.
Como escrevestes, assumi uma turma de primeira série em outubro de 2004. Esta foi a minha primeira experiência como professora depois de formada no magistério (1998). Como havia sido chamada em 15 de outubro de 2004, lembro que ainda havia elogiado a administração do município, pois imaginava que só assumiria uma turma no ano de 2005. Hahaha!!! Que viagem!!!!
Me apresentei na SMEC dia 22/10/07. A secretária da educação - Doraci Madruga - muito atenciosa, expos que o município estava com dificuldade em nomear professores para o turno da tarde no currículo, e com isso duas escolas estavam sem professores: uma em um bairro populoso com cerca de trinta alunos e outra no interior do município com oito alunos. Ambas as escolas tinham acesso com ônibus e sendo assim eu poderia continuar estudando na faculdade. Optei pela escola no campo, talvez por imaginar que seria mais fácil lidar com 8 alunos do que com 30. Deveria me apresentar na escola imediatamente, mas de ela já podia me antecipar que 4 alunos seriam reprovados e 4 aprovados. Assustei-me com tal colocação, mas no dia posterior compareci à escola.
Fui recepcionada pela diretora, ainda no ônibus, pois com excessão de uma professora (Denise) todas as outras utilizavam o transporte dos alunos para chegar a escola. O pânico talvez não tenha sido total pois a coordenadora da escola era minha colega na faculdades nas cadeiras de cálculo. Ao entrar na sala de aula vi alunos totalmente apáticos, com medo que mais uma vez eles não tivessem a professora, pois eu já era a sexta naquela primeira série. Fui orientada pela escola a fazer duas avaliações por bimestre em cada disciplina. Como nenhuma outra professora havia deixado notas, tive que avaliar o terceiro e quarto bimestre. Com isso, um dia era aula e no outro era prova( e tinha que ser prova). Sempre acreditei muito no poder que o elogio possui. Sendo assim, sempre elogiava o trabalho e dedicação que os alunos possuiam. Quando terminei as avaliações, vi que 6 alunos tinham chance de passar para a 2ª série, e isso me deixava muito feliz. Mas os alunos eram subimetidos a um teste de leitura na frente da turma+professora+diretora+coordenadora. Para meu desespero, um dos alunos que eu tinha certeza que conseguia ler, não quis (por ser apaixonado pela coordenadora e ter medo que ela não gostasse dele se ele errasse na leitura). Expliquei para elas a situação e pedi para ficarem no no refeitório (sala em frente a minha). Quando convenci o Matheus ue elas tinham ido embora ele veu sem problemas.
Como os alunos não estavam 100% ainda com os conteúdos, a diretora entendeu que eu deveria acompanhá-los para a 2ª série. Foi aí, que conheci a Rose.

Anônimo disse...

12bet | VR Sports (Sports) | VR Sports | VR Sports | VR Review
12bet is a sport developed by 더킹카지노 Real Time Gaming. Read about its 11bet gameplay, features and best virtual sports available on VR and planet win 365 other sports.